15 de novembro de 2012

Um sonho em três atos



UM SONHO EM TRÊS ATOS



I

   Não há crepúsculo na metrópole. Não existe nenhuma troca de cores. O céu é sempre único. Sempre cinza. Sempre doente. Isso me enoja.
   Há prédios demais na metrópole para que as nuvens possam parecer minimamente reais. No fim, o grafite no muro parece muito mais real do que tudo isso. Um grafite anônimo, escondido e tímido, retrata o céu.
   O céu no muro parece muito mais real do que o céu na metrópole. Eu fico aqui imaginando o que pensou quem pensou isto.
   Eu deixei que minhas mãos limpas tateassem a pintura, mas só houve pó, e minhas mãos não eram mais elas mesmas porque não estavam mais limpas. Eu procurei consolo no céu, mas só encontrei concreto. As nuvens são feitas de concreto.
   Quiçá Deus mora no apartamento 802, último andar da nuvem de concreto mais alta. Parece que Deus é feito de carne e come carne. Eles querem que eu acredite nisso.
   Suspirei. Outro dia ouvi uma moça dizer à outra, no ônibus, que hoje em dia se trabalha para curtir a vida, mas que no próprio trabalho desperdiçamos o lucro. Isso me fez pensar. É como se passássemos a mão no céu do muro e nos enchêssemos de pó, e no fim, nossas mãos não são mais nossas, porque não estão mais limpas. Meio confuso. Minha cabeça latejou. Não é possível tocar o céu e nunca foi.
   Eu só sinto que não fui feito para isso tudo. Eu visto roupas caras, eu trabalho numa nuvem, eu tenho amigos. Eu só queria que as roupas caras que eu visto fossem as de um rei, e não um terno. E queria trabalhar numa nuvem de verdade, talvez numa nuvem de tinta, mas não numa de concreto. Também, queria amar meus amigos, e não apenas tê-los. É um pouco confuso. Eu coço a cabeça, mas sinto que não coço com convicção o suficiente para parar os pensamentos.
   O único problema de existir é ter uma carteira de identidade. A sociedade é como um jogo onde ninguém pergunta se você quer participar. Ninguém pensa como eu penso. Ninguém sabe ser simples e vazio. Eu me sinto só. Sei que estou sendo oprimido, pois é assim que o sistema responde àqueles que o questionam. Eu estou na boca de um grande monstro de concreto onde nada me pertence, onde nada me agrada e eu não quero estar aqui.
   Não há céu dentro da boca de um monstro, há só o céu de sua boca, e ele é cinza, porque ele é de concreto.



II

   Neste momento, cheguei à praça onde as nuvens de concreto se afastam um pouco. Ainda assim, não há crepúsculo. Ainda é metrópole. Há uma padaria nesta praça onde eles vendem sonhos.
   Eu já estaria morto se, nesta metrópole triste, não houvesse os sonhos. Não há fuga para um homem que se perde. Para um homem que não pertence a nada, e que não possui nada, não há descanso, porque para gente assim a sociedade é crua. Há uma gota de perdição em cada passado que eu revejo. Eu era feliz enquanto incipiente. Há uma gota de dor em cada significado que eu entendo, pois na verdade eu não entendo nada, pois nada faz sentido. É um pouco confuso... Por isso gosto de sonhos.
   O pão do sonho é neutro. Pães são neutros. Não há sabor marcante no pão, e por isso ele não me remete a nada. A goiabada também. Não há goiabas no meu passado, há poeira de apartamento. Eu posso comer goiaba, sorver seu gosto, pois não há goiabas em minha vida, e nunca houve. Enquanto como um sonho, me sinto vazio, pois ele não me lembra nada e, ainda assim, é gostoso. É delicioso. Dá-me prazer.
   Eu como sonhos como quem come putas.
   Mas naquele dia não tinha sonhos, me disse a funcionária. A padaria se tornou um corpo estranho.
   E o Pânico chegou, como uma bomba no estomago.
   Há uma força que luta para me manter calmo, mas um homem não para um terremoto. Eu estava nervoso. Como não haveria sonho? Como eu posso viver sem sonhos?
   Querem roubar-me o último refúgio. A sociedade investe contra o último território rebelde.
   A gerente saiu de dentro de um pão para me ajudar. Eu estava nervoso, borbulhava, era o Pânico. Ela me levou para fora, onde o céu me olhava, estéril. O céu me pareceu uma mulher frígida, um jovem castrado. Ela me trouxe água e eu lhe trouxe minha história. Minhas idéias, não ocultei uma sequer. E ela me ouviu como quem ouve a um sonho. Senti-me como um pão, e minha história, goiaba.
   A moça não conseguiu dominar a maré dos olhos.  Eu fitava o céu, perdido. Percebi que minhas mãos repetiam gestos alucinados quando a moça me tomou às suas. Então ela desabou. Disse-me que eu era seu pai e que eu era louco. Disse que muito me amava, e depois tropeçou em seus próprios verbos.
   Óbvio que eu não sou louco.
   Eu só quero um sonho. O mundo me condena por querer um sonho. O mundo me oprime por querer um simples espaço fora do mundo, e agora eu sou louco. Meu estomago se inverte e eu dou uma bofetada na cara da moça. Da minha filha. Agora eu lembro.
   Uma série de pessoas cai em cima de mim, e me prende. Funcionários da padaria que eu mesmo contratei. Lembrei do céu no muro. Senti-me horrível, como se estivesse em meio a robôs que me observavam. Senti como se eu fosse o último homem no mundo, e como se os outros fossem existências estranhas que me observavam. Tudo me observa, agora.
   É como se eu existisse no mundo, e então me sujasse de pó, e deixasse de existir porque agora eu estou sujo de mundo. É confuso. Minha cabeça dói.


  

III

   Tudo parece mais real no hospício. A ausência de uma convenção absoluta revela o quão infundada é a realidade. A completa ausência de sociedade revela o quão artificial ela é. O médico entra e senta-se à minha frente.
   Eu conto meus sonhos.
   O médico me responde com um comprimido.
    Enquanto saia, eu interrompi sua vida. Eu o chamei, e ele se virou. Eu não sou o único louco, doutor. Todo mundo é louco.
   E todos os anos de experiência do Doutor, através de sua voz cansada, me responderam:
   Você está certo.
   Agora tome sua medicação.
        

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