Soldadinho na neve
Aconteceu na
Rússia, em um tempo onde meu avô tinha onze anos.
Dizem que, certa
vez, um Soldadinho estrangeiro perdeu-se em um bosque ermo. Era tempo em que o
inverno, muito carinhoso, envolvia a terra em um espesso cobertor de neve, e
lhe beijava assim, noturno, a tez coberta de gelo. Por isso fazia muito frio, e
os animais todos dormiam confortavelmente em suas cavernas.
Nesse tempo de silêncio
e calma, o Soldadinho caminhava, suas grandes botas tentando inutilmente cravar
pegadas na branca alfombra. Os sulcos, porém, apagavam-se muito rapidamente. Inimigos
se borravam entre os negros paus para, à medida que o Soldadinho se
aproximasse, revelarem-se apenas um truque da neblina.
Foi quando o Soldadinho
avistou, ao pé de uma grande inclinação do terreno, um pacote coberto por neve.
Ao menos, foi o que ele pensou ter visto, antes de perceber tratar-se de uma
menina.
- Ó sol, tu que
és tão forte, derrete a neve que prende o meu pezinho? – Ela implorou para o
astro, que boiava inócuo, intercalado pelos galhos secos.
E o Soldadinho
escorregou a inclinação do terreno como quem adentra uma trincheira. Retirou a
neve que prendia o pé da menina e tornou a caminhar.
- Espere, moço!
Mas já não tinha
o Soldadinho cumprido todas as suas ordens?
- É razoável que
me tomes como tua responsabilidade, visto que foste tu mesmo quem me desprendeu.
E o Soldadinho
notou, observador, que a menina já não podia mais caminhar; tinha os pés
gelados e os joelhos fracos. Se ali a deixasse, coitada, ela teria os pés
cobertos por neve novamente, de forma que o esforço do Soldadinho em salvar-lhe
uma primeira vez teria sido totalmente inútil. Ele pôs-se de cócoras e tomou o
pacote às costas.
- Que gentil de
tua parte, Soldadinho, atender às minhas suplicias! Far-te-ia o favor, pois, de
alimentar-me?
Sim, senhora. Assim,
a menina tornou-se seu Fardo. O Soldadinho saiu em busca de um canto onde
pudessem comer tranquilos.
Peregrinaram pelo
bosque ermo sem trocar palavras. O Fardo nas costas do Soldadinho tornava suas
botas pesadas, de modo que era cada vez mais difícil retirar os pés da espuma
de neve, uma vez que os tivesse enterrado em seu leito. Era uma tarefa tortuosa,
esse negócio de caminhar em terras feitas de nuvem.
Por outro lado,
porém, tinha lá o Fardo as suas vantagens. Metade do Soldadinho estava menos
sozinho, agora, com o pacote às costas. Além disso, as baforadas suaves do pacote
aqueciam as suas orelhas, o que lhe era bastante agradável. A ideia de servir,
da mesma forma, facilitava a jornada, pois é mais fácil alcançar algo do que
procurar por nada.
Finalmente,
chegaram a uma clareira de onde era possível ver o céu, o qual parecia feito de
neve assim como a terra – Uma neve mais escura, porém, e mais brilhante.
Havia um tronco
que, dias antes, tombou morto com o peso da neve, e que agora serviria de
abrigo para o Soldadinho e seu Fardo. Eles se sentaram juntinhos: o Fardo, o
Soldadinho e o seu Rifle, embaixo do pau que parecia abraçar-lhes. O Soldadinho
tirou sua ração da mochila e os dois comeram em silêncio.
- Sua comida é
ruim, mas foi o suficiente para saciar-me. Muito obrigada, moço! Numa próxima
ocasião tu gostarias, por acaso, de visitar a minha casa para provar dos meus
biscoitos? Decerto são melhores do que tua ração rançosa.
Uma casa; ó
Deus!
Parecia-lhe tão
distante...
O Soldadinho
imaginou brasa crepitando em uma lareira de pedra, e à mesa muito pão e frutas,
e quem sabe alguns dos biscoitos feitos por seu Fardo. Será que estariam
quentinhos? Quase pôde imaginar-se à poltrona, recostando-se, alegre, sob a
iminência de um cochilo...
Mas o que via –
e com que solidão! – através de suas retinas magras, era uma imensidão repleta
de ausência, apenas, e uma infinita falta de cor!
O que te
aconteces, portanto, por trás de tuas retinas incipientes, criança? A voz do
Soldadinho se espreguiçou pela primeira vez em muito tempo:
- O que enxergas
tu?
Ó, não sabia que
falavas! O Soldadinho ficou incerto. Nunca havia falado antes. O Fardo olhou
para o longe, por fim, até onde o limite de seus olhos se esboçava. Um floco de
neve tocou os seus cílios.
- Eu vejo um
manto branco, moço, se estendendo pelo bosque. Debaixo dele eu vejo a Morte, e
debaixo dela vejo a primavera, que se alimenta de seus restos.
O Soldadinho
bebeu de suas palavras com prazer, como se fossem mel. Nem o seu Rífle, nem o
do inimigo, tinham tanta força quanto aquelas palavras, ainda que as armas
causassem Morte – e todo mundo sabe que Morte é coisa firme, – e as palavras se
perdessem no ar rarefeito um segundo após terem sido ditas.
O Soldadinho
levantou-se e olhou ao seu redor, na vã tentativa de encontrar o seu caminho. O
Fardo o chamou em voz baixa, logo em seguida, enquanto ele ponderava se devia
ou não escalar certa árvore. Ele se agachou à sua frente e ouviu as suas
próximas palavras.
- Ó Soldadinho,
tu que és tão gentil, podes emprestar-me teu ombro forte para que nele eu teça
meus sonhos?
Que voz sofrida
era aquela, como se fosse projetada sobre últimos suspiros? Por que sua cabeça
pendia assim, tão cansada? O Soldadinho já havia notado antes que o Fardo
estava sonolento, mas pensara que era por causa da comida, assim, como as
pessoas ficam depois de se encherem muito... Foi tolo, e só então percebeu,
pois era estupidamente impossível que sua pouca ração alimentasse alguém
direito.
E que faria se,
pelo seu toque, o Fardo entrasse em seu coração, para logo em seguida ser dele
exilado?
- Injusta! –
Bradou o Soldadinho. – Pedes que eu te conceda meu ombro, para logo após nele
tombar! Se já és um peso incrível viva, mil vezes maior seria morta!
E logo o
Soldadinho viu que o fardo o tinha nos olhos. Mas que íris extraordinária!
Lembrava a cor que a grama tinha no quintal de sua terra. E agora, tão
distante, o branco a cercava por todos os lados, o gélido branco da neve. De
forma alguma desejava, o Soldadinho, que as pálpebras encerrassem assim, tão
cruelmente, aqueles olhos!
- Tua voz lhe
sai, moço, pela primeira vez, e isso é bom. Porém, ainda não escutas direito.
Concede-me companhia, enquanto espero o trem que me leva, e te ensino a escutar
verdadeiramente. Que tal, esta troca?
O Soldadinho
sentou-se ao lado de seu Fardo e confortou seu corpo ao lado do dela. Onde
estava com a cabeça, afinal? Ela era o seu Fardo, e ele a carregaria até o fim,
pois é isso que fazem os Soldadinhos. Ela deitou a cabeça cansada no seu ombro
e, em movimentos lânguidos, tirou as quatro luvas, as suas e as dele. Enquanto
isso, o Soldadinho tentava suportar os gramas daquele rosto, que em seu ombro
revelavam-se toneladas.
Depois, o Fardo
tomou as mãos do Soldadinho às suas e a pôs em seu rosto rosado.
E o Soldadinho
escutou tudo.
Escutou com a
palma de sua mão as batidas do coração de seu Fardo, as quais não eram mais
fortes que o leve toque de um dedo em vidraça; Escutou com o dedão calejado a
suavidade de seus lábios feridos, dilacerados pelo frio e pela sede cuja água
não sacia; Escutou com os outros quatro dedos restantes, as outras centenas de
mechas de seus cabelos ruivos, e escutou, por fim, com toda a sua mão, quando o
ultimo suspiro de vida lhe escorreu pelas ventas congeladas.
Que faria com o
corpo? Seria tolice carregá-lo: pesaria mais em seu coração do que em suas
costas, afinal. Se ali o deixasse, por outro lado, apoiado contra o tronco
gentil, seria eterno enquanto durasse o inverno, e isso era bom. Visto que neste
momento não tinha, o Soldado, mais nenhuma esperança de sair vivo daquele
inverno, o corpo seria eterno enquanto ele vivesse; depois disso, quando a
primavera desabrochasse do que sobrou de sua morte, as formigas iriam tragar os
seus restos, e tudo voltaria à sua origem, como deve findar tudo o que vive.
O Soldado deixou
a Menina e seu Rifle para trás e caminhou, sozinho, por entre o vazio dos
troncos congelados. Ele era assim, para quem o visse na neve, apenas um homem
triste.
Seus ouvidos,
porém, escutavam toda a vida que dormia sob o tapete branco; todos os grunhidos
das criaturas, todo farfalhar de plantas, e a canção que retumbava pelo planeta
e ecoava em cada coração que batia, em cada roçar da seiva no tronco, e do
tronco na seiva, pois tudo era audível a seus ouvidos de criatura, como deveria
tudo ser à todos os ouvidos que escutam o nosso mundo!
O Soldado tombou
algum tempo depois, em um lugar qualquer do ermo bosque; Ele ainda pode ver o
alvorecer antes de tornar-se frio como a neve.
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