4 de fevereiro de 2013

Até onde der




Até onde der

   Eu estava precisando de grana, e tudo o que carregava no meu bolso era meu RG, minha carteira de motorista categoria C e uma nota amassada de dez reais. Já não morava em lugar nenhum há meses, e as poucas pessoas que conheci como vagabundo não me importavam nada. Eu era um cão vadio das ruas fuçando latas de lixo um pouco mais dignas para escapar da classe dos miseráveis. Mas a verdade é que eu era um completo miserável. Chovia muito quando eu entrei no galpão e pedi um emprego como transportador em uma companhia de lixo. Era um trabalho pouco procurado porque era um trabalho para cães. Eu disse: “bem, não é um cão o que vocês querem? Pois eu sou um bom cão. Posso trabalhar em tempo integral, não preciso de férias, porque tudo que eu desejo é comida, caras, então me dêem logo um caminhão e alguma porra para carregar e vocês terão seus trabalhos feitos”. Os caras gostaram de mim. Disseram que eu era engraçado. Disseram que eu era o tipo de homem que eles procuravam.

   Apesar disso, eu estava pouco me fodendo para o emprego. Eu já não tinha casa, não tinha amigos, não tinha grana, tampouco qualquer sonho ou vontade pela qual valesse à pena estar vivo. O problema é que a fome é o maior cupim da vida. Por mais miserável que seja o sujeito, por mais avesso que ele seja à vida, se ele não comer findará faminto. E que o digam as crianças que morrem, dia após dia, pela falta do que nos é tão ordinário: ninguém merece morrer faminto.

   Deram-me apenas um caminhão e um mapa, e mandaram que eu fosse até o Amazonas entregar certa mercadoria. No momento eu estava em algum lugar das profundezas de São Paulo. A estrada era longa e minha inexperiência nela era ainda maior, o que me fez tomar mais tempo do que deveria para chegar aos confins do Brasil. Além disso, tudo o que eu tinha para comer era uma cédula de dez reais e uma térmica de café que o gerente da companhia me dera como brinde. Tive de me virar roubando frutas de fazendas distantes e de feiras lotadas, dividindo lanchinhos com outros caminhoneiros e suportando muito, muito café. E eu odiava café.

   Cheguei ao Amazonas atrasadíssimo, e isso não me rendeu nada além de um corte no pagamento. Eu disse: “foda-se, só me dêem o que sobrou do dinheiro e a próxima mercadoria. Estou começando a gostar desse negócio de estrada. A melhor parte é que eu não preciso ver gente”. O pessoal da companhia ria e repetia inúmeras vezes que eu era um cara divertido. Meu corte no salário continuou, mesmo eu sendo um cara divertido. Eu na verdade não ligava. Alguns diziam sentir pena de mim: “tão jovem, e já nessa vida!”. Mas eu já sabia há tempos que a pena de um homem não faz ninguém voar. Então, eles seguiram as minhas palavras e me deram a mercadoria.

   À medida que eu ia fazendo entregas, minha intimidade com a estrada se tornava mais profunda – E do mesmo modo, a minha solidão. Eu queria cada vez menos ficar parado em uma cidade, e isso fazia de mim um caminhoneiro incrível. No calor das rodovias eu me dispunha a cavalgar os cento e trinta, cento e cinqüenta quilômetros por hora que a minha máquina permitia. E aí eu pensava: “nossa, seria tão bom se eu morresse!”. Mas a gente nunca morre.

   Meu diálogo simbólico com Kerouac e a sua ânsia por estar na estrada durou cerca de dois meses. Em fato, não haveria um final mais apropriado para a minha jornada senão esse que vos narro – haveria, talvez, um menos doloroso, mas concordo que não seria tão bonito. Aconteceu em algum lugar da Bahia, na minha terra natal, em uma estrada federal.

   Era noite e eu havia parado em um posto com mais um grupo de caminhoneiros para alimentar-me e descansar. Comemos em um restaurante agradável, com um som agradável, e os meus colegas de trabalho eram suportáveis. Minha alma, porém, era turbulenta e infantil, e mostrava-me em pensamentos incontroláveis, sempre que eu me sentia bem, centenas de motivos para que eu me sentisse mal. E eu me via confuso e acuado, e acabava sempre por dispensar a companhia da alegria antes do seu verdadeiro fim.

   Acontece que, voltando sozinho para o meu caminhão, um vulto mergulhado em sombras postava-se a me encarar. Ao lado dele havia um pequeno pacote. Era uma noite fria, e por não me sentir bem eu me via pronto para o combate iminente. Não modifiquei meu passo e mantive a caminhada até a minha máquina. Ao primeiro movimento da sombra, eu me atirei contra seu corpo magro e o agredi.

   - Calma porra! Vai com calma, porra!

   Afastei-me. Ele se recompôs e depois me disse, em um discurso alongado e mal conectado, que estava apenas fazendo negócios – sabe, negócios que não se pode fazer ao dia. Pensei logo tratar-se de drogas, e ouvi a toda conversa fiada com desprezo. Ele tinha uma fala coloquial e malandra, uma fala do tipo ruim de transcrever ao pé da letra, porque pareceria mecânica e agressiva demais. Foi então que ele puxou o pacote à luz e o desprezo me abandonou ao mesmo tempo em que eu senti minhas tripas abandonarem-me. E então eu fui preenchido com retalhos de incompreensão e descrença na humanidade.

   Porra cara, era uma menina.

   A gente estava no meio da Bahia e eu estava vendo uma puta de 14 anos. Seus olhos eram dois olhos miseráveis, coloridos com o brilho seco de um poste muito velho. Sua boca era uma linha constante e fria. Em um breve instante, todos os meus problemas me pareceram ridículos e triviais. Em um breve instante, a fome me pareceu agouro pequeno. E eu me senti tão horrível, que cheguei a ter pena.

   Mas pena não fazia ninguém voar.

   Eu paguei tanto dinheiro na puta que me sobraram apenas quinze contos na carteira. A negociação foi feita rapidamente, o que me foi ótimo porque eu estava à beira das lágrimas. Não tenho receio em dizer que, apesar de, na época, já me considerar maduro e esclarecido, eu ainda era deveras inocente. Ajudei a menina a subir no caminhão e parti. O combinado era que eu a entregasse no mesmo posto, no dia seguinte, ao meio dia. O modo com o qual o negociante falou insinuava punições severas para quem desobedecesse aos prazos. Eu não tinha duvidas de que eles me encontrariam aonde quer que eu fosse se tentasse fugir.

   Também não tinha dúvidas de que eu ia, de fato, fugir.

   - Tá com fome? – Perguntei, minutos depois de partirmos. A menina olhava para a escuridão pela sua janela. Parecia confortável, mesmo estando no carro de um estranho, mesmo sendo uma puta.

   Ela não respondeu. Talvez estivesse admirada com a visão do escuro, que era talvez mais clara que a sua própria existência. Talvez estivesse juntando forças para agüentar o iminente fato de que ia ser violentada. Tratei logo de tranqüilizá-la.

   - Eu não pretendo... Hum, fazer isso com você. Bem, você sabe o que. – Me recompus. – Para ser sincero, eu pretendo, na verdade, fugir com você. Vou tirar você dessa vida. Vamos para bem longe, e aí você vai poder crescer como uma criança normal. O que acha?

   - Eles vão te matar se você tentar. – Ela respondeu apenas, sem olhar para mim. Para dizer a verdade, eu também não acreditava nem um pouco nas minhas palavras. Estava sendo tolo, e sabia disso, o que me tornava mais tolo ainda.

   - Então nós fugimos para longe.

   - Eles seguem.

   - A gente sai do país.

   - Você não tem dinheiro. Ninguém tem. É por isso que estamos todos aqui, não é?
   Ela me olhou. Era uma menina inteligente.

   - Então a gente vai até onde der.


● ● ●


   Amanhecia. A menina comera os restos de comida que eu tinha guardado da noite anterior e dormira profundamente em meu colo ocupado. Certamente fora uma noite extraordinária para ela: uma noite inteira sem ser fodida! – Era o que eu pensava. Depois, tentava imaginar quantas pessoas já haviam a violentado. E pensar que as pessoas que faziam coisas tão inescrupulosas eram meus colegas de profissão! Mas qual era a surpresa? Afinal, não é difícil imaginar um caminhoneiro abusando de uma criança. O difícil é voltar a encarar um depois de perceber isso.

   A menina acordou por volta das seis da manhã. Seus cabelos tinham cheiro de gente pobre, mas eram castanhos e bonitos. Ela bocejou profundamente e sorriu, e me pareceu que estava um pouco mais disposta esta manhã. Pensei: ela deve estar feliz, tendo alguém que a entenda e que se importe com ela. Então ela me perguntou se eu realmente não ia comê-la. Quando eu disse que não, ela sorriu.      

   Eu esperava que ela sorrisse como quem é resgatado. Como quem, por fim, é liberto de uma masmorra escura e sem vida. Mas ela sorriu como quem tira uma folga do trabalho. Ela sorriu como uma puta.

   - Você não se sente incomodada? – Perguntei.

   - Você se acostuma. – Ela respondeu.

   - Mas você não preferiria ter uma vida normal?

   E ela insistiu: não vai me comer mesmo? Percebi que eu estava fazendo papel de bobo. Comecei a pensar que ela na verdade gostava da profissão. Que ela estava de acordo com aquela vida. Era, na verdade, uma criança baixíssima, e não merecia salvação alguma.

   E então, em uma manhã repleta de vida, eu senti vontade de morrer.

   Parei o caminhão no acostamento e resolvi fazer uma coisa que há tempos não fazia. Desci do caminhão e carreguei a menina até a grama. Ela me olhou surpresa, mas nada falou. Deitei-me ao lado dela e fechei os olhos.

   Focar. É necessário estar verdadeiramente em foco quando se quer verdadeiramente viver. Está tudo bem em ser displicente quando não se tem motivo algum para estar vivo. Mas agora eu tinha. Eu calei a minha mente e resvalei ao silêncio profundo. Tentei ignorar o olhar confuso no qual a garota me tinha, tentei esquecer o barulho dos carros roendo o asfalto, o roçar do vento e até o próprio eco da minha respiração. Deixei a angustia que me consumia escapar pelas mangas da minha camisa. Depois, sentei-me e procurei observar a manhã.

   Deus, como a noite é escura! Quando estamos imersos na sobra profunda, na depressão anciã, o seio noturno parece ser tão infindável! Mas há sempre uma manhã oculta no respirar da madrugada. E quando ela chega se abre inteira como uma primavera, e nós nos sentimos tão calmos... A verdadeira dádiva da vida é poder sentir cada manhã após uma noite profunda. É perceber que a solidão da noite ficou para trás, e agora estamos livres de qualquer coisa, seja boa ou ruim. A manhã é plenitude entre os raios de aurora que consomem as nuvens brancas, iluminando os campos da estrada e semeando as sombras nas árvores. Tendo meditado, voltei-me a menina.

   - Desculpe-me, agora estou verdadeiramente desperto.

   Voltamos ao caminhão e eu tornei a dirigir. Enquanto isso, repensei nas minhas conclusões anteriores. Tolo eu fui ao pensar que a garota gostava de sua profissão, e muito mais tolo eu fui ao maldizê-la por isso. A verdade é que eu, dentre todas as pessoas, deveria entender a sua dor de imediato, porque ela era exatamente igual a mim. Não era uma questão de gostar ou não da realidade que nos envolvia. O fato é que pouco nos importava. Nós estávamos naturalmente fodidos, e fosse qual fosse nossa opinião acerca de nossa condição, o fim era sempre o mesmo. Tudo o que nos restava era aceitar e viver. Era justo que ela simplesmente aceitasse o que a vida impôs a ela. O injusto era ela ser criança.

   O que podia eu fazer? Era tão miserável quanto a puta, e faltava-me dinheiro e poder. Já que seria impossível levá-la para longe, pensei em levá-la até onde eu pudesse. E me perguntei, humilde, a toda vida que eu enxergava na estrada: é ilícito tentar? A resposta cabia única e exclusivamente a mim.

   - Qual é seu nome, criança?

   - Marina.


● ● ●


   A tarde chegou inexoravelmente e eu estava a centenas de quilômetros do local combinado. Quando, exatamente, o Cafetão iria perceber que eu havia fugido com a sua puta? A verdade é que, provavelmente, ele já havia percebido, e cada face que eu visualizava no acostamento era um possível agente da companhia de prostituição infantil nordestina localizando o meu paradeiro e me delatando aos executores. Eu era o ilegal do ilegal, o clandestino da clandestinidade, o que fazia de mim um grande herói do ético, merecedor da bênção da pátria e do bem comum! Porém, nem por isso eu estava privado do fracasso.

   Parei rapidamente em um posto e comprei comida para a menina. Tínhamos pouco dinheiro para muita estrada, e por isso me detive ao meu tão odiado café. Não comemos parados, e sim a mais de cem quilômetros por hora em direção a lugar nenhum. Batia uma brisa boa em nossos cabelos, e a música era animada e de bom gosto. Era o meu primeiro passo no proibido, e estava com uma acompanhante inigualável.

   - Você é um cara legal, moço. – Ela comentou.

   - Eu sou um miserável, criança.

   - Ainda assim, você é legal. Hum, sabe, eu até que não me importaria em ser comida por você. O que me diz? Ah, se você se sente incomodado por eu ter sido vendida, a gente pode desconsiderar isso e fazer só por diversão mesmo. O que acha? Eu não suportaria fazer isso com outros caminhoneiros, mas você é um cara legal, e... Eh... Então? – Ela dizia isso enquanto enrolava os cabelos.

   - Daqui a quinze anos, querida. De fato, você é belíssima, mas seria desagradável para mim.

   Eu disse isso com tranqüilidade. Marina, porém, estava confusa. As palavras seguintes lhe foram surgindo devagar, enquanto ela olhava para baixo. Daqui a pouco escrevo as palavras, antes deixe-me explicá-las: era uma crise de alegria. Gente miserável freqüentemente se sente culpada por estar alegre e por isso tem a necessidade de foder tudo.  É a pior desgraça dos destruídos. Totalmente terrível. Por isso, enquanto ela vomitava a sua crise, eu pensava comigo: “Deus, é lícito que se sinta isso, mas porque logo uma criança?”.  

   - Você tem pena de mim? Você se sente mal por eu ter minha vida estragada, moço? Não faria diferença se eu fosse... P... Puta ou não. Não faria. O problema não é com a prostituição, moço. O problema é com o mundo...

   Eu pus meu dedo indicador lentamente nos seus lábios, sem tirar o olho da estrada. A música me fez bem. As palavras seguintes saíram muito tranquilamente.

   - Esquece isso, criança. A gente vai até onde der, e só. Vai ser nosso grande chute no mundo.

    Ela recostou a cabeça no banco e suspirou de olhos fechados. Eu pensei: nossa, que olhos lindos. Mas carregam tanta destruição! Tanta malícia, e maldade, e isso me doía muito, a ponto de eu querer ir cada vez mais longe, e pisar mais fundo no acelerador. Mas aí eu lembrava: a gente vai até onde der. Não precisamos nos apressar. Só precisamos continuar até que a vida nos pare.

   Alguns minutos mais tarde tomamos um caminho pouco usual e deserto. Eu simplesmente pensei que era um caminho bonito, e nós nos enfiamos nele. Não tínhamos exatamente para onde ir mesmo! Tudo o que sabíamos é que iríamos até onde desse. O problema é que havia um carro, um pequeno carro azul, que estava na nossa cola há horas. Eu já havia percebido o perseguidor quando a menina disse, com aqueles dois olhos verdes e maduros cravados no retrovisor.

   - Finja que eu não te disse nada, moço, mas aquele carro está perseguindo a gente. Se nos pegarem, eu não vou ficar do seu lado. Vou dizer que você queria me seqüestrar. Me desculpa, mas não vou mentir quanto a isso.

   - Tudo bem, criança. Eu não ligo.

   - Eu... Gosto de você. Mas quando nos pegarem, não é a mim que eles vão fazer mal. Só queria que você soubesse disso.

   - Claro.  

    Nós pegamos uma rota alternativa, feita de barro e ladeada por árvores, e depois de alguns minutos conseguimos despistar os perseguidores. Então, aliviados, ela me contou que a rede de prostituição era ampla e eficaz. Contou que havia muitos carros espalhados pela terra prontos para pegar e transportar as meninas, e que quando alguém não as entregava esses mesmos carros tomavam-nas de volta. Disse-me que eles tinham armas. E contou que havia muitos informantes que ganhavam dinheiro para localizar os foragidos. Era uma rede sem furos. Eu perguntei, então, quantas meninas eles tinham. Ela disse que nunca chegou a conhecer todas.

   -São incontáveis. Eles compram a gente dos lugares mais miseráveis e distantes que você possa imaginar. Ficam com a gente até os dezesseis anos, dependendo da menina, e depois nos revendem para estabelecimentos fixos.

   Eu tentei imaginar que tipo de pessoa venderia a própria filha. Conclui que não era, de modo algum, uma questão de dinheiro. Há muita gente faminta mundo a fora que, ainda assim, consegue manter um mínimo de dignidade. E descobri, ao fundo de uma raiva profunda, que há algo pior do que ser faminto: ser um filho da puta.

   - Você gostava de seus pais? – Perguntei.

   - Não. – Ela respondeu.

   - Você prefere seu cafetão a seu pai?

   - Não.

   No fim, é tudo a mesma merda, pensei comigo mesmo. Só nos resta ir até onde der.

   Paramos em um posto qualquer e, com minha ultima grana, comprei algo para nós dois comermos. O relógio da lanchonete batia três e meia da tarde, e o calor estava infernal. Além disso, tinha o cheiro ruim de adubo que vagava junto com o vento e nos agredia as narinas. Mas, até o momento, estava tudo indo muito bem, e nós estávamos relativamente alegres. Eu abri o fundo do meu caminhão e peguei três travesseiros de melhor qualidade do carregamento. Então, nós roubamos um carro estacionado e voltamos à estrada. A menina aceitou o espaço do banco traseiro e os travesseiros com alegria. Eu esperava que ela aceitasse com felicidade.

   A verdade é que a felicidade reside no horizonte. Eu pus cento e trinta por hora e tentei alcançar o momento em que a terra e o céu se beijam. A fina linha onde a felicidade se insinua. Mas ao passo em que eu me aproximava, o horizonte tornava-se ainda mais longínquo e inalcançável, e revelava paços desconhecidos à medida que nós avançávamos. Eu tive medo, porque as terras seguintes estavam cada vez mais escuras e desconhecidas. Marina dormia um sono profundo e sem sonhos sob meus travesseiros roubados. Eu olhei para o lado, onde os campos do coração do Brasil resplandeciam. Minha pátria me abandonou. Abandonou seu filho e sua filha mais miseráveis. Bem, pensei, só nos resta ir até onde der.


● ● ●


   A terra foi ficando cada vez mais azul-escuro, e as sombras se alongavam, preparando-se para a noite iminente. A tarde era um tempo misterioso, eu pensava. Nós nunca sabemos o que se passa realmente à tarde, porque o sol nos dá sono, e nós acabamos dormindo sempre. Até quando estamos acordados, estamos na verdade dormindo, e nunca sabemos ao certo o que aconteceu na tarde. É tempo de descanso, tempo de se reconhecer que a vida nada mais é do que um vazio gigante, e que às vezes vale a pena não ouvir nada. E quando menos se espera a noite nos surpreende. E com ela, se aproximam os nossos medos mais profundos.

O carro tossiu e parou: a gasolina havia acabado. Eu abri a porta dos fundos e beijei a testa de Marina com cuidado. Ela se levantou devagar e sorriu. Era uma menina incrível. Talvez a companhia mais agradável que eu encontrara em toda a minha vida. E isso me fazia muito triste. Minhas palavras saíram mais cansadas do que o normal quando eu disse a ela, a seus olhos brilhantes:

   - Estamos chegando ao fim, criança. Espero que tenha gostado da viagem.

   - Eu gostei. – Ela disse. – Mas ainda, queria ter feito amor com o senhor.

   - Eu deveria ter aceitado quando você propôs.

   Rimos com nossas mentiras e deixamos que elas morressem em seu silêncio. A gente cresceu, afinal, eu pensei. Ambos estávamos um pouquinho mais maduros. Já não precisávamos de extravagâncias e materialismos para provar o nosso afeto. Nosso amor se resumia pura e completamente em si próprio, e não em provas fúteis como o sexo ou a salvação. Era tão bom amar! Nós pegamos um travesseiro cada e pusemo-los debaixo dos braços. Depois, demos as mãos e caminhamos pela estrada infinita. Não importa o que acontecesse, enquanto nós pudéssemos, iríamos até o fim.

   Depois de meia hora de caminhada, ela perguntou:

  - O que você fez de manhã, quando deitou na grama?

   - O que? – Eu não entendi. Ela repetiu a pergunta.

   - Eu meditei. – Ela não parecia satisfeita. – Você está cansada?

   - Estou.

   - Quer que eu te ensine a meditar enquanto descansamos?

   - Quero.

   Quanto mais tempo ficássemos ali, menos longe poderíamos ir. Eu pensei quanto ao que fazer por um instante. Ah, não tem problema, concluí; nós não queremos ir tão longe assim, afinal. Se quiséssemos realmente ir longe, nós sairíamos do país, trocaríamos nossos nomes e tentaríamos ser feliz. Na verdade, não queríamos nada disso. Só queríamos ir até onde desse. Eu queria viver por completo o que me brotava espontaneamente. Sinclair se perguntaria: por que será que isso me era tão difícil? Na verdade não é difícil. Basta caminhar.

   Mas me abstive a meu objetivo e ensinei a menina a meditar. Deitamos nossos corpos miseráveis sobre a grama e limpamos nossa mente. É fácil pensar na grama como o esterco que a adubou. É fácil pensar na grama como simples chão. Difícil mesmo é aceitá-la apenas como grama. Naquele momento, estávamos deitados sob ela. 

   Meditar é simplesmente não pensar em nada, criança. É como quando você ouve uma música. A vida é a música. Quando você fala, você deixa de ouvir a ela. Só calando a si mesmo você pode se permitir a ouvir à vida. Então, faça o seguinte: coloque as mãos sobre o plexo... Sim, aqui. Agora, você inspira fundo e depois expira. Isso. Muito devagar. Tente não pensar em nada. Tente esquecer a grama, o vento, o cheiro de adubo, tente se esquecer de respirar. Isso. Agora medite. Mas tente não dormir.

   Quando nos levantamos e abrimos nossos olhos, depois de muito tempo, tudo estava muito mais escuro. Nossos contornos se misturavam com a noite de forma difusa. Ao horizonte, os últimos raios de sol, extremos e rubros, se afogavam. Era como se o mundo fechasse a cortina de nossa apresentação. Do outro lado da estrada, um carro azul e triste nos alcançava. Seria problemático se nós déssemos as mãos agora e eles percebessem que ela aceitou a fuga, ainda que nossos espíritos pedissem desesperadamente pelo nosso toque. Pedi que Marina andasse à minha frente. Estávamos separados por cerca de dez metros, mas Deus, eu me senti tão só! Era como se eu fosse o último homem da terra, e à minha frente estivesse o meu último pedaço de alegria. O carro parou um pouco atrás de mim e eu ouvi três portas se abrirem.

   Fim da linha.

   O ser humano é um ser cruel. Não há limites para a violência quando ela toma a sua proporção selvagem e animal contra um homem. Não há palavras o suficiente para descrever a dor e a sensação de impotência que nos aflige quando somos espancados até poder malmente respirar sem se afogar no próprio sangue. Eu sentia minhas costas corroendo ao toque dos porretes enquanto lambia a sujeira de um chão desconhecido. O mundo nunca me pareceu tão grande e estranho. Mas então eles me viraram de barriga para cima e eu pude ver o céu, o grande céu sem estrelas, e eu me senti em casa porque o céu é sempre o mesmo em qualquer canto do mundo. Porque nós somos sempre tão pequenos que, bem no fundo, nada importa de verdade.

   Eles me deixaram um trapo. Novamente desempregado, quase morto e sozinho, minha vista já embaçava quando vi Marina pela ultima vez, dez metros à minha frente. Eu não pude ver a sua expressão, não pude me consolar em seus olhos maduros, mas tive a certeza de que ela não se despediu. Não há duvidas quanto ao nosso fim: ambos iremos morrer um dia, em algum canto sujo desse mundo, provavelmente mais cedo do que imaginamos e por motivos mais triviais. Somos dois frágeis miseráveis, dois reféns da realidade, dois pequenos cães em um mundo selvagem.  

   Mas a minha certeza é de que quando chegar o fim mesmo, e Deus mandar a gente baixar as nossas cartas, nós teremos um grande trunfo. Se não houvesse esse trunfo, para dizer a verdade, seria muito difícil de viver, porque foi tudo tão triste... Mas criança, acredite quando digo que essa bagunça inteira valeu à pena de verdade, porque tendo sucesso ou não, a gente foi até onde deu, e é isso que importa.








Lucas de F. R. Altmicks, 03 de Fevereiro de 2013

2 comentários:

  1. Uau, muito bem descrito e enriquecido de detalhes... Os finais que você coloca para seus personagens são tristes as vezes, mas bem criativos e verdadeiros. Parabéns :)))

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