26 de fevereiro de 2013

Depois do Show




Depois do Show

   Uma gargalhada xinga a rua; um grupo de passos baldios interrompe a madrugada. É a euforia do pós-show: a emoção que os faz correr e gritar, como se não existisse corpo em toda a música. Há risos e comentários, há a fumaça de cigarros baratos e latinhas quicando na sarjeta. O grupo percorre escandalosamente os paços escuros da ladeira, vomitando barulho, em uma busca desesperada por existência.

   Porém, a madrugada não os parece notar. O silêncio do sono é intocável. Os Punks são apenas moscas gritando.

   Surgem três vultos ao fim da ladeira. A banda se junta, em sussurros remotos. Três fãs, três gatas no cio, subindo o asfalto. O baterista vai embora mais cedo. Os outros três urubus dividem a carcaça. Cody atira seu fumo ao chão e esmaga-o.

   -Vocês tocam bem pra caralho, caras! – Disse uma, piercing nos lábios, loira.

   -Ainda melhores na cama...

   Uma cotovelada na boca do estômago, por parte do vocal, e o guitarrista se cala. Duas das meninas riem, a outra observa o pequeno baixista. Cody, baixo e magro, de cabelos espessos e bagunçados, encara-a como um filhote depressivo. Sua camisa cinza é muito folgada para seu corpo.

   -Então, a gente tava pensando em beber mais um pouco antes de dormir... Topam? – Sugeriu o vocalista. Não foi necessária muita persuasão para fazê-las babarem a oportunidade. Apenas a menor das presas, uma garota de cabelo maculado em azul e de muito rímel nos olhos, disse que não estava com estômago para a coisa e que iria voltar para casa. Cody se ofereceu para acompanhá-la.

   -Porra, que sortudo. Ele estava mirando a mina o Show todo – Comenta o guitarrista.

   -Ah, nem é sorte. Ela também estava mirando ele – Complementou uma das raparigas.

   -É olho, seu bundão. É tudo questão de olhar. – Disse o vocal.


   Não há mais Punks correndo a ladeira, não há mais fãs eufóricas e doidas para dar.  Cody caminha silenciosamente ao lado da menina. Agora são só dois vultos embalsamados pela neblina da madrugada, como duas silhuetas em uma tempestade de neve. Nilo olhou a menina, que o olhava. Tinha olhos verdes como esgoto radioativo, realçados pelo rímel.

   -Eu conheço um lugar legal. – Disse Cody. A menina riu.

   -Acho que você não entendeu, cara. Como se diz? Tudo tem seu preço.

   -Ah é? E qual é o seu?

   -Cem pratas.

   Cody manteve o olhar, e depois mirou o topo de um prédio. O céu estava claro naquela noite. Brilhava em um vermelho morto, ao passo em que suas nuvens refletiam a ferrugem dos postes de concreto. A cidade tinha um ar fabril, como se seqüestrada por uma espessa cortina de fumaça carbônica. Cody estendeu o dinheiro sujo, depois de procurar as cédulas no bolso. Seus dedos fediam a cigarro e corda de baixo.

   Alugaram um quarto fodido em um paço marginal da metrópole, onde a cama gemia muito. Fizeram amor como quem despena um lírio. Era como se seu o corpo de leite derramasse sobre uma boca sedenta, e como se o leite fosse uma poesia e Cody, um homem prestes a degolar-se. Era como se ele sentisse a poesia como uma transa. E a cada vez que lhe englobava as nádegas nas mãos, a cada vez que se lhe dispunha a chupar seus seios, englobasse ao invés da carne, um mundo, e chupasse não o corpo, mas sua vida. Terminaram exauridos, completamente vazios e felizes. O lírio violentado germinara mil outros lírios, puríssimos. A cama suja da urna era como um Nirvana, assim, como um orgasmo.

   Depois de um breve sono sem sonhos, coisa de uma hora, Cody afundou-se à varanda e deu um trago. A cidade dormia, e os vagabundos que vadiavam eram seu sonho. A menina do rímel chegou à porta, de corpo despido resplandecendo à luz mecânica da metrópole. Seu cabelo azul cor de céu soava completamente artificial, porém lindo, tão lindo que Cody teve vontade de se afogar nele. Ela sentou-se na extremidade oposta da franzina varanda.

   -Você não é puta. – Constata Cody. A menina riu.

   -Não sou, mas acabei de ganhar cem contos.

   Queda o silêncio, naturalmente.

   -Quer que eu devolva? - A menina pergunta. Cody acena negativamente. – Eu gosto de pregar peças nos caras. Eles normalmente não percebem.

   -Você vai acabar virando puta de verdade, assim.

   -Eu devolvo o dinheiro, sempre.

   -Aposto que a metade dos machos não aceita a grana de volta.

   Mais uma vez, o silêncio, como fenômeno inevitável. A sombra do pequeno baixista, emoldurada sob o 
vidro da varanda, era imensa, icônica.

   -Está chateado? – Perguntou a garota.

   -Não, na verdade. – E sorri, um sorriso cansado. – Apesar de ser muito fácil forjar um sorriso.

   A menina ri. - No que você está pensando?

   Cody não responde imediatamente. Ele traga uma grande quantidade de fumaça e aprisiona-a nos pulmões desgastados.  Lança um olhar baldio pela metrópole. Luzes de neón convulsionam por toda a marginalidade da noite. As nuvens se alucinam, sujas até o topo. O exército das tribos urbanas marcha pelas avenidas cromadas em petróleo, um tiro ecoa pelas vielas e um Skinhead tomba morto. Sirenes de polícia sempre chegam primeiro que as ambulâncias. Cody solta a fumaça devagar, e sua mente se esvazia, e torna-se completamente azul.

   -Estava pensando em fazer amor de novo... Deixar um pouco de ser Punk, de ser o baixista da banda, de ser o filho perdido, e ser só Eu. Isso tudo fode comigo.

   -É como se fossemos só uma coisa, né? – Constatou a menina, levantando-se e tomando as costas do rapaz nos braços.

   -É como se fossemos alguma coisa... – Cody levantou as mãos à procura daqueles cabelos.

   Podia sentir o coração da menina a bater na porta de suas costas, sentia os dois seios polidos pressionados contra seu omoplata. Ele explorava o cabelo da garota como quem busca coisa muito velha, em baú muito querido. E as suas expirações, se confundindo na orquestra das sirenes noturnas, se aquecem mutuamente no gélido vento da metrópole, como se fossem dois espíritos gêmeos de éter que se encontrassem finalmente às portas do céu.

   -Vamos para a cama...

   E se iluminaram, se iluminaram a noite inteira.

3 comentários:

  1. Porquê nunca mais postou texto nenhum ?

    ResponderExcluir
  2. Acontece com todo mundo, mas para mim, que a única forma que tenho de te entender, é através dos seus textos, é um desespero quando você fica muito tempo sem postar.

    ResponderExcluir

Muito obrigado por comentar! Você não tem ideia do quanto está contribuindo para o nosso trabalho e do quanto estamos gratos! Mas por favor, comentários construtivos!