24 de fevereiro de 2013

O Vale de Abril


O Vale de Abril

   Em dado momento, ele percebeu que estava desperto. Não sabia definir o instante exato em que acordou, tampouco onde estava. Ele já vinha observando o teto por um longo tempo. Sua palidez lhe era desconhecida. Sentiu-se, pouco a pouco, tomado por um sentimento estranho; então, virou a face. Com um sonoro estalo no pescoço, sentiu todo o seu corpo contorcer-se de dor. Estava pesado e sonolento, e sua boca tinha gosto de fel. Sua mente, profundamente entorpecida, registrava o ambiente sem atribuir-lhe nenhum significado. Era como se olhasse os objetos, mas não os conseguisse interpretar. Ele dormiu logo em seguida.

   E, de novo, o teto. Não fazia idéia de quando havia acordado outra vez. O fato é que, em um passe de mágica, descobriu-se novamente em vigília, a observar um branco desconhecido e profundamente triste. Na presente ocasião, sentia-se um pouco mais forte, então sentou-se à beira da cama. Teve de esperar minutos até que a tontura e o enjôo evaporassem de si. Estava definitivamente um trapo.

   Pôs-se de pé. O assoalho de madeira estava morno. Pela janela, o calor de uma tarde de verão invadia o plácido cômodo. Era um local agradável, porém estranho. Tendo as pernas extremamente fracas, e dores por toda a extensão do corpo, ele decidiu deitar novamente e, novamente, cobriu-se em um sono profundo.

   Da terceira vez ele despertou imediatamente. Lá estava o teto, de novo. Ele sentou-se, e desta vez a tontura foi breve, e as dores já não eram tão amplas. Percebeu que seus lábios estavam como que dilacerados e que seu ombro esquerdo tinha o dobro do tamanho e estava muito roxo, além de notar diversos arranhões consideravelmente grandes espalhados pelo seu corpo, e uma mão esquerda adormecida que não lhe doía, mas muito preocupava. A causa dos ferimentos não lhe passou imediatamente pela cabeça, porque ela ainda latejava e confundia-se. Ele levantou-se e ensaiou alguns passos. Cedo recobrou a capacidade de andar. Rondou calmamente o quarto modesto, feito de madeira e desprovido de eletricidade, porém muito agradável e fresco, e então tornou a sentar na cama.

   - Onde estou? – Perguntou em voz alta, como que para testar seu próprio timbre.

   Que misteriosos motivos o haviam trazido até aquele jazigo? Ele percorreu suas lembranças confusas em busca de explicações pela primeira vez. Há muito tempo, desde criança, havia vagado pelas ruas da Metrópole, sem rumo, buscando o seu pão nos restos dos outros homens. Sua vida não passara de uma luta interminável e melancólica. Em última ocasião, lembrou estar no deserto gelado do norte, com sua esposa Sansara, em busca de um futuro. Então, os lobos, o sangue, e, logo, o teto branco. Lembrou-se da lenda das bruxas do norte, das temíveis feiticeiras que aprisionavam os desprevenidos em seus covis de falsa paz, e então os devoravam. Por certo havia sido pego por uma! Havia de fugir.

   Levantou-se novamente e dirigiu-se à porta. Abriu dela o suficiente para o seu corpo desnutrido. Percorrera o corredor escuro com o silêncio característico dos miseráveis, até findar em uma sala ampla e bem mobiliada, muito agradável, em cujas paredes explodiam duas grandes janelas. Visto que faltavam portas, ele apoiou o pé no parapeito da janela mais próxima e preparou-se para o salto.

   - Ora, acordaste?

   A bruxa!

   Imediatamente ele pulou. Logo que seus pés tocaram o solo, seus joelhos cederam e seu corpo curvou-se em pânico e dor, e ele rolou pela relva abaixo. A moça seguiu a sua queda e tomou o seu corpo em seus braços.

   - Vá com calma! Ainda não recuperaste as forças por completo. – Ela o reprimiu, mas falava de modo ameno.

   A bruxa ajudou-o a levantar-se e levou-o até uma mesa de ferro que ficava no que parecia ser o jardim da pequena casa. Ao norte, por trás da casinha, Ele via os picos da montanha de gelo fazendo uma meia lua, como que protegendo o vale onde estava. Ao sul, um vasto bosque encobria o horizonte. Naquele ponto, ele já tinha certeza tratar-se de obscuridades, pois era impossível haver qualquer outra coisa naquela região a não ser metros e metros de neve. Nos arredores da casa da bruxa, porém, havia paz e calor, brisa fresca e ramagens verdes, e um plácido céu anil.

   Vinda de casa, a bruxa pôs um copo de certo líquido âmbar, meio viscoso, a frente dele. O homem olhou o néctar com desconfiança. Tomou-o nas mãos e balançou, na esperança de encontrar nele qualquer coisa de estranho. A bruxa riu-se de suas precauções.

   - Não te preocupa, mau nenhum vai fazer-lhe. Logo que tomares, te sentirás melhor.

   - E como vou saber se não é veneno? – Ela tomou o copo de sua mão e bebeu um gole.

   - Qual o sentido de dar-te veneno agora?

   Explicação razoável. Bem, o que ele tinha a perder? Derramou uma fina cascata do mel nos lábios, e sentiu com surpresa a dor dos ferimentos ser substituída por um calor manso. Logo que o líquido lhe desceu pela garganta, seu corpo relaxara, e tornara-se quente. Exclamou tratar-se de uma bebida incrível.

   - Chama-se Hidromel, a bebida dos Deuses! Não acreditas? Descansa, que já lhe mostro a fonte.

   E assim ele o fez. Deixou que os cálidos raios solares restaurassem a sua força, enquanto observava o bosque e os pássaros, as flores e o cabelo dourado da moça. Passadas algumas horas, eles levantaram-se e dirigiram-se por uma larga trilha que cortava as árvores. Tinham os passos lentos e apreciavam as bordas da floresta com calma.

   - Como se chamas? – Perguntou a bruxa.

   Ele respondeu com sinceridade. Ela disse que se chamava Abril. Trocaram um olhar confiante e continuaram a caminhada.

   De alguma forma, ele estava começando a se aprazer com a situação. Antes estivera, senão tenso, um tanto desconfiado e duro com toda utopia daquele vale. Agora, porém, sentia-se tão bem que não se importava se aquilo tudo era obra de magia, um simples acaso ou o que quer que fosse. Havia sofrido tanto durante toda a sua vida, amaldiçoado com tamanha convicção e entrega as noites frias em que uivava de fome, que a perspectiva de um descanso, ainda que lhe findasse em morte, ele aceitava com todo o coração.

   Vinte minutos ao sul, chegaram a um caudaloso rio de leite! Espantado, ele recusou-se a beber quando Abril lhe garantiu segurança, até que, tendo cedido, provou da melhor lactose de sua vida. Ela também se deliciou com aquele fenômeno incrível, sobrenatural, ou, muito mais provavelmente, mágico, que escorria de uma fenda em uma rocha rosada e percorria um leito macio de certa matéria desconhecida. Eles descansaram mais um pouco às margens do leite, pois o corpo dele muito doía, e só retomaram à caminhada uma hora depois, porque o sol já iniciava o seu mergulho de fim de tarde.

   Chegaram, por fim, a uma grande e larga árvore, talvez tão grande quanto uma sequóia gigante, de cor muito viva e cujos galhos balançavam jovialmente no teto do mundo. Abril tomou uma faca na mão e cortou a casca do vegetal, de onde escorreu um líquido viscoso e âmbar, o Hidromel. O rapaz sedimentou respeito e silêncio perante a vista daquele ser sublime, colossal e magnífico, que poderia muito bem ser Deus. Eles beberam um pouco do líquido, como em um ritual silencioso, e caminharam de volta a casa, quando o sol finalmente se pôs.




   Os dias se passaram em um ritmo calmo e feliz, exatamente como o descrito. A cada noite, ele esperava ser finalmente morto pela bruxa, mas descobria-se na manha seguinte justamente o oposto: mais vivo. Seu corpo melhorava em uma velocidade sobrenatural, muito provavelmente por causa da seiva da grande sequóia, e a vitalidade de seus músculos estava, pouco a pouco, superando os seus padrões antigos. Não se alimentava de banquetes, e por muito considerava as refeições pequenas demais, mas aos poucos descobriu que o que tinha era sempre o suficiente, e que o convívio com Abril já não lhe tornava a fartura necessária. As noites do vale eram sempre muito mornas e agradáveis, enquanto os dias eram alegres e divertidos. A bruxaria era, em ultima instância, maravilhosa.

   À medida que seu corpo ia ficando mais forte, as caminhadas vespertinas tornavam-se mais extensas e altivas, e as maravilhas da magia iam desabrochando, inexoravelmente. Juntos, eles viram seres extraordinários, plantas de beleza indizível, montanhas de chocolate, torres de ferro, e todo o tipo de fantasias que podemos imaginar. Porém, ao invés de duvidar mais a cada nova explosão do impossível, Ele acreditava mais na validez de tudo aquilo, na santidade da magia do vale. Tudo lhe parecia tão perfeito e alegre que seria impossível duvidar. E, de fato, ele estava certo! Não havia truques, armadilhas, tristezas ou defeitos que inferissem corrupção no vale de Abril. Era a verdadeira utopia do mundo, a verdadeira perfeição.

   E, à medida que o tempo passava, ele ia se apegando mais à bruxa, ao ponto de apaixonar-se. Ela era excepcionalmente linda! Sim, é verdade que Sansara, sua antiga esposa, era, também, belíssima; mas a beleza de Sansara vinha de suas linhas levemente imperfeitas, que lhe conferiam certa aura profana. Abril, ao contrário, possuía uma beleza que vinha do âmago, do profundo significado da palavra, um modelo perfeito de menina. Tinham, também, uma empatia imensa, como se fosse gêmeos, como se entendessem o “eu” do outro de forma etérea. Não tardou para que se enamorassem e convivessem intimamente, de forma que suas almas se juntassem em uma só, e pudessem finalmente alcançar o ápice da felicidade.

   Certa vez, depois de um dia inteiro de caminhada, chegaram ao extremo sul do vale. Era incrível como aquele paço utópico podia existir no deserto de neve sem que ninguém notasse. Da magia, ele não esperava menos. Havia, porém, é óbvio, um meio de entrar e, conseqüentemente, de sair do Vale. Era uma parte do bosque onde a copa das árvores era feita de nuvens. A vista era belíssima, e o ar cheirava muito bem, pena que era muito distante, e por isso fazia-se inviável estar lá sempre. Em um dos seus muitos monólogos, onde Abril explicava as coisas do vale e falava sobre o mundo, ela disse:

   - Este é o bosque do fim. Se prosseguirdes por aqui, logo sairás do vale e estarás novamente no deserto gelado.

   - Impressionante! Será que não poderíamos sair e expiar lá fora?

   - Isso, nunca. A entrada para o vale é imprevisível e mudana. Foi muita sorte tua tê-la encontrado. Uma vez que tu saias, será impossível retornar.

   Sua voz era amena e sonora, e ele sorveu-lhe as palavras com muito prazer. Não havia nele, afinal, qualquer intenção de deixar o vale, portanto não importava. E, assim, continuaram a andar e enamorar-se, transbordando de felicidade.

   Em outra ocasião, tendo perguntado-lhe sobre a bruxaria, Abril lhe respondeu:

   - É verdade que isto tudo é bruxaria. É, porém, perfeita, por isso não se preocupe. Este vale foi criado com magia há muito tempo, pelos meus ancestrais, e nós temos vivido aqui desde épocas muito remotas. Freqüentemente viajantes perdidos chegam aqui. Muitos ficam, como tu. Outros preferem ir embora.

   - Não imagino o motivo destes; é, realmente, um vale perfeito. Não posso crer que alguém, algum dia, o abandonou!

   E, nesse instante, Abril olhou para ele, meio preocupada. Mas, o vale era perfeito, e por isso ela suspirou e lavou seus poucos temores.

   Isto porque havia um instante, talvez um ou dois minutos por dia, onde seu companheiro envolvia-se de melancolia. E este instante era quando ele pensava em Sansara. Sansara era a sua antiga esposa, antes de ele findar no vale. Usualmente, acontecia no momento do despertar: enquanto ele encarava o teto, procurava lembrar a aparência da mulher, de seus cabelos negros e sujos, do seu rosto travesso e jovial, e da irritante esperança que ela carregava consigo, mesmo sendo ambos do tipo mais miserável. Neste momento, Abril, a bruxa, percebia a tristeza e o apego do rapaz com temor, ainda que fossem efêmeros.

   Porém, de fato, havia fundamento nos temores dela. Três anos se passaram muito rapidamente no vale, e visto que enamoravam-se, fizeram um filho. Eis que, por puro acaso, ou mesmo por influência da magia, o menino era a cópia perfeita de Sansara! Por causa deste filho, os acessos melancólicos do rapaz tornavam-se cada vez mais freqüentes, e a ânsia de Abril, mais profunda.

   Há de se entender que não era a saudade, tampouco o amor, o que o afligia. Com certeza não havia entre Ele e Sansara nada, senão uma dependência materialista, espiritual, que nenhum bem trazia e que empobrecia a ambos. Eram simples frutos da aspereza humana, da miséria social, dois seres insignificantes que, juntos, se tornavam ainda mais miseráveis. E, de fato, quando acordava e pensava em Sansara, era muito freqüente que Ele não pudesse recordar-lhe sequer o rosto!

   O que o fazia devagar, porém, era algo mais profundo. Algo que Ele possuía quando estava com Sansara, mas não era, em si, a própria Sansara. Aquilo era a única coisa que lhe faltava no Vale, apesar de Ele não fazer a mínima idéia do que significava. Acontece que, no mais profundo de seu ser, ele não sentia-se completo sem aquilo; e, que o digam os iluminados, o que não é completo não é, de modo algum, perfeito. Os dias passavam, e cada vez mais o Vale se tornava ordinário e enfadonho. Seu semblante ia entristecendo, e ele sentia fome. Os anos prosseguiram e a magia tornou-se irrelevante.

   Exaurido, decidiu deixar a sua utopia depois de exatos sete anos. Acordou mais cedo do que o habitual, certo dia, beijou a tez sacra de sua mulher e filho, e caminhou solitariamente até a floresta das nuvens, onde o frio era intenso. A jornada que precedeu a sua ida foi, apesar das circunstâncias, refrescante. O ar era fresco e amplo, o Vale reverberava de vida e de cor e tudo era infinitamente magnífico e supremo. Sentia-se vivo, naquele dia, como na primeira caminhada. Chegando ao bosque onde as copas das árvores se transfiguravam em nuvens, onde podia-se beber das árvores apenas passando a mão pelas suas folhagens úmidas, Ele olhou para trás e reverenciou o Vale. Lembraria de Abril e de seu filho com muito amor e saudade.

   Contemplou a morte de si mesmo, enquanto transpassava o limiar da perfeição.



3 comentários:

  1. Essa semana eu estava pensando em escrever um texto sobre bruxas, porém achei que as pessoas achariam idiota, então não escrevi. Mas, acabei de ler seu texto, - que por sinal foi muito bem escrito e me fez sentir como se eu estivesse dentro do vale -, e tomei coragem para escrever o texto que eu queria, obrigada :)

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    Respostas
    1. Obrigado!

      Sempre vai ter alguém que acha suas coisas idiotas. Só não escreva para essas pessoas!

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